Proto-Reforma: A Estrela e o Ganso

por | out 30, 2019 | História da Igreja, Reforma Protestante

Entenda mais sobre a Proto-Reforma de John Wycliffe e John Huss que preparam o caminho para a Reforma Protestante do Século XV.

John Wycliffe

O proeminente pré-reformador, John Wycliffe, foi um teólogo inglês e precursor da Reforma Protestante, conhecido como a Estrela da Manhã da Reforma. Os estudiosos encontram dificuldades em detalhar com precisão os primeiros anos de sua vida, mas sabe-se que sua família era proprietária de terras em Richmond.

Wycliffe testemunhou a dizimação de parte da população europeia pela Peste Negra, no século XIV, o que teria motivado sua conversão e posteriormente seu envolvimento com a teologia.

Em 1372, Wycliffe concluiu seu mestrado em Oxford, a faculdade mais célebre da época, e começava a ganhar fama, embora, anteriormente, já houvesse realizado feitos como a persuasão do parlamento inglês, sob a regência do rei Eduardo III, ao não pagamento da tributação papal, argumentando de que o papa não tinha autoridade sobre a igreja inglesa.

O debate em voga na época em questão, era em como Deus transmitia o domínio temporal aos homens. A opinião mais aceita era que todo o governo temporal só poderia ser legítimo se estivesse vinculado a igreja romana, apoiado no dogma da infalibilidade papal, que conferia ao papa um “estado de graça” permanente e legítimo, por isso, este poderia instituir governantes que fossem legítimos através de sua autoridade, o que mais tarde se convencional chamar de ex-cathedra.

Wycliffe, impelido por alguns professores, como Richard FitzRalph, começava a questionar a transmissão de poder governamental vinculado ao papa. Para Wycliffe, o critério para governar residia no estado de graça de um governante, e não necessariamente nos mandos e desmandos papais, que inclusive poderia estar vivendo em pecado. Se por um lado a exigência de uma vida piedosa era cobrada de governantes temporais, o papado deveria estar sob esta mesma condição, e caso não estivesse, poderia, até mesmo, ter seus dotes e terras removidos pelo povo, como ele argumentou em seu escrito De Civili Dominio.

Isto foi o suficiente para suscitar a ira do papa Gregório XI, recém chegado do “Cativeiro Babilônico” de Avignon para Roma, que condenou Wycliffe através da emissão de uma bula. Todavia, Wycliffe era protegido por nobres como John de Gaunt, que o conferiram terreno protegido para a propagação dos pensamentos reformadores de Wycliffe.

Com o tempo, o pré-reformador começou a adotar posições mais austeras contra a figura do papa e certos dogmas da igreja católica. Wycliffe passou de um simples opositor de dogmas periféricos a um verdadeiro protestante que lançaria luz às Doutrinas da Graça. O papa já não era uma figura a ser reformada em sua conduta, mas sim, o próprio “anticristo”.

Impactado pelos dissabores do Grande Cisma, ele via a disputa pelo pontificado como uma intriga profana, posto que o cargo papal trazia uma imagem que se assemelhava mais a um monarca do que a um apóstolo Pedro, humilde e servindo sem qualquer riqueza.

Wycliffe fez grandes avanços teológicos. O pré-reformador defendeu o estado de graça pertinente a clérigos e a leigos, a dissipação da imponência papal coberta por riquezas, em detrimento da apostolicidade humilde de Pedro, ao qual a igreja católica entendia ser o fundamento do papado. Outros dogmas importantes, como a divisão de pecados em capitais e veniais ou indulgências, também foram combatidos. Wycliffe dizia ser as Escrituras o crivo pela qual a igreja deveria passar para que fosse atestada em suas condutas, diminuindo o valor dos testemunhos à parte do cânon bíblico.

Alvorecia, então, os primórdios do Sola Scriptura, do Sacerdócio Universal dos Crentes e da Justificação pela Fé.

Todavia, nenhuma de suas confrontações se mostrou tão marcante para época do que suas teses contra o conceito da transubstanciação da ceia. Tal ensino custou seu cargo em Oxford. Sendo depois ordenado reitor em Lutterworth, onde passou seus últimos anos de vida trabalhando em suas teses.

Embora conquistasse grandes avanços teológicos, Wycliffe preservou o dogma católico do Communio Sanctorum (dogma acerca das divisões da igreja em triunfante, padecente e militante) e também o dogma da extrema-unção.

Antes de sua efetiva saída de Oxford, Wycliffe liderou e comissionou um colegiado na empreitada de traduzir as Escrituras, da Vulgata Latina para a língua inglesa, a fim de iniciar um trabalho missionário com os camponeses e aldeões, trazendo as Escrituras para linguagem do povo. É pertinente lembrar que tanto o acesso às Escrituras quanta aos diálogos da missa, só eram possíveis de compreender para conhecedores do latim, competência outorgada apenas a um grupo seleto de nobres e clérigos. Um grupo foi enviado aos camponeses das regiões campestres portando os escritos de Wycliffe e trechos das Escrituras em inglês, sendo apelidados pelos seus opositores de lolardos (murmuradores). Estes, sem nenhuma regalia e contando com a benevolência do povo, realizavam campanhas pregando a Palavra. Outros importantes nomes se unem a Wycliffe como proto-reformadores: Os italianos Girolamo Savonarola e Gregory de Rimini, além do boêmio John Huss, que veremos abaixo.

John Huss

O Reformador da Boêmia foi um sucessor das ideias de Wycliffe. Seu notório intelecto e avidez à teologia lhe conferiram o título de mestre pela Universidade de Praga, onde mais tarde se tornaria professor de teologia. Praga estava mais próxima da Inglaterra desde o casamento entre Anne de Luxembourg com o rei Ricardo II. A aproximação entre a Universidade de Praga e Oxford, por conta do matrimônio imperial, deram boa ocasião para que Huss entrasse em contato com as obras de Wycliffe em profundidade. Ideias estas já popular em sua época e bem difundida na Boêmia.

Huss passou a proferir duros discursos contra os excessos do papa através da Capela de Belém, denunciando a corrupção em Roma. Seus sermões, inteligíveis a língua do povo, passou a arrebatar apoiadores ao Wycliffismo.

Em 1403, um professor da Universidade de Praga, levou a faculdade a reportar as ideias de Wycliffe como sendo heréticas. Posteriormente, em 1408, Huss seria excomungado pelo Arcebispo de Praga. Nesta altura, Huss havia angariado muitos adeptos decorrentes de seus sermões, por conta disto, a decisão de Zbynek, o Arcebispo, causou um levante popular em favor de John Huss.

Ainda assim, tempos depois, Huss seria exilado através de um interdito de Roma, para o sul da Boêmia, onde escreveria sua obra, Sobre a Igreja.

Em 1414, com o alvorecer do Concílio de Constança, os temas centrais eram a busca pela resolução do Grande Cisma e as supostas heresias insurgentes contra a igreja católica. Huss, creditado como herético da Boêmia, foi intimado a comparecer no concílio sob a garantia de proteção por parte do sacro imperador Sigismundo, o que não aconteceu, e Huss ficaria preso pelos próximos oito meses antes de sua morte pela inquisição.

No ano seguinte, com os ensinos de Wycliffe sendo declarados formalmente como heréticos pela igreja católica, Huss foi condenado ao fogo da inquisição, após não se retratar de seus ensinos. Diante de sua morte iminente, Huss proferiu sua famosa predição:

“Hoje, estais queimando um ganso [significado de seu nome em tcheco]; entretanto, daqui a cem anos havereis de ouvir um cisne cantar; não o queimareis, pois sereis obrigados a ouvi-lo.”[1]

Um século depois, estaria sendo afixadas às portas da Igreja do Castelo de Wittenberg, as noventa e cinco teses contra o uso das indulgências, de Lutero, O Cisne. Evento que marcaria a derrocada do império papal.

Mesmo com a morte de Huss, a reforma na Boêmia seguiu o seu curso com grupos, ditos hussitas, como os utraquistas, que pregavam a livre eucaristia, e os taboritas, um grupo mais extremo de Tábor (cidade que deu nome ao movimento). Posteriormente, os utraquistas se aliaram à igreja católica, somando esforços para derrotar os taboritas, décadas depois.

As chamas de uma reforma interna, não obstante os esforços dos proto-reformadores, aos poucos se apagava. Bruce L. Shelley argumenta:

“O valor do período reside na demonstração de que a reforma interna da Igreja papal era impossível.”[2]

Este valor, somado a intrepidez de homens como Wycliffe e Huss, que estavam dispostos a abrir mão de suas próprias vidas, evidenciaram o desejo de um remanescente que zelava pelas sãs doutrinas. Não há de se atribuir aos esforços dos proto-reformadores uma falha. Estava pontuado a necessidade de uma reforma através de mártires que prenunciaram o movimento da Reforma Protestante em todas as suas facetas, seja dogmática, seja hermenêutica. Ao final, embora a igreja papal houvesse triunfado sobre a tentativa de uma reforma interna no século XIV, o século XV traria o ousado canto do Cisne, ao qual o sacro império não poderia afrontar. A Reforma Protestante estava a caminho.

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Bruno Philippe

Editor e Gestor de Conteúdo do Ministério LER.

[1] Erwin Weber, “Luther with the Swan”, The Lutheran Journal, Vol. 65, no. 2, 1996, 10, citado em John Piper, The Legacy of Sovereign Joy: God’s Triumphant Grace in the Lives of Augustine, Luther, and Calvin (Wheaton: Crossway, 2000), 10, por sua vez, citado em Pilares da Graça, Lawson (AD 100 – 1564), Steven J.

 

 

[2] Shelley, Bruce L. História do cristianismo, 2018.